quinta-feira, 16 de junho de 2011

Suponha que um anjo bata à sua porta. Não se espante. (...) Então o anjo bate, depois você larga o que estiver fazendo, abre a porta e convida-o para entrar e sentar, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Como a coisa mais natural do mundo, quando chega visita, também porque faz calor, e ainda ou principalmente porque algo em você sempre soube que deve-se ser gentil com anjos, você pergunta se ele gostaria de beber alguma coisa. Evite fazer isso: afinal, o que um anjo bebe? (..) Não, não pergunte nada. Pense apenas que, se um anjo bateu exatamente à sua porta nesta época do ano, e se tão exato entrou e sentou à sua frente, ninguém melhor do que ele saberá, com exatidão, o que fazer. Então espere. Não fique tentando descobrir se seria arcanjo, querubim ou serafim, nem se barroco, gótico ou medieval. Também tente serenizar a memória que certamente vai disparar feito computador, enumerando todas as imagens angélicas arquivadas desde a infância, ou até antes. Controle a tentação de achá-lo a cara daquele anjo da guarda com as mãos estendidas sobre as crianças à beira do abismo (...). Concentre-se neste, pousado à sua frente. Suponha que você está sentado imóvel e calado à frente de um anjo em sua própria casa, numa manhã ou tarde ou noite deste dezembro. Isso dura algum tempo, parado feito um fotograma. E atenção: estou certo que só depois que o anjo perceber que você parou de corpo e mente, e portanto abriu-se para ele, aceitando-o sem ohs!, é que vai começar a falar. Não uma voz de som, compreenda, mas uma voz dentro de você mesmo, muito clara, embora de certa forma abstrata, porque não-sonora. Com essa voz e nesse momento, o anjo vai dizer a você que pode pedir qualquer coisa. Mas qualquer, qualquer mesmo?, você pergunta ávido. Calma, calma: chegamos ao ponto. Eu aviso porque sei que, quando o anjo falar, será muito fácil sua mente desenfrear-se desgovernada por carros, amores, apartamentos, viagens, iates e toda essa espécie de prazeres. Bastardos, bradará o anjo. Porque — atenção! — se você for pessoal, haverá em seguida um ruflar de asas, um clarão, e o anjo desaparecerá sem atender pedido algum, sem deixar nenhum sinal. É que, a grande revelação eu faço agora, os anjos deste dezembro não são pessoais. Concentrado e fervoroso, então, peça pelo País, por este onde estamos agora os três. Eu, você, o anjo. Que se banhe de luz, peça, e não só isso, peça abstrações como justiça, paz, dignidade, honestidade, e peça ainda o concreto de estradas, escolas, trabalho, comida. Feche os olhos, enumere tudo, com todos os detalhes. Não importa que demore muito, e certamente vai demorar: o País tem todos os defeitos do mundo. Mas os anjos, eles também têm todo o tempo do mundo. Agora abra os olhos. Suponha que você tenha terminado de ler este texto. Suponha que você não acredita em anjos. Suponha que você joga o jornal de lado aborrecido e assim nesse movimento de folhas voando, voa também entre elas uma pena pelo ar. Branca, leve, inconfundível. Que estranho, você pensa, parece de anjo. É neste momento que alguém bate à sua porta.

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